5.2.12

Esse texto não é novo, postei no meu antigo blog. Pequenas modificações foram feitas, mas é basicamente o que me lembro de uma história já um pouco antiga... 

50 (ou Umidade Relativa do Ar)


            Vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove, trinta. A Novalgina no meu copo de água da torneira. Foi naquela outra noite, em que São Paulo tinha 13% de umidade relativa do ar. Estava toda no meu copo, a água de São Paulo. Não sei quantos dias sem chover. Eu estirada na cama, pensando que o Saara era assim mesmo. E antes que eu começasse a ver miragens, fui para o bar, onde a cerveja mataria minha sede e a respiração daquela gente deixaria o ar mais ameno. Calcei o sapato vermelho de salto alto e me arrependi, ainda no elevador. Contei os segundos de tortura voluntária a qual eu submetia os meus pés. Trinta, trinta e um, trinta e dois. Muito mais do que a umidade relativa do ar.  
Trinta e três. Os passos contados do carro até o bar. A quantidade de pessoas que se degolariam por uma bebida gelada. Os goles da vodka de Luíza, até aquele minuto em que ela dava o trigésimo quarto e pedia outra dose. Sabe-se lá qual dose era aquela. Trigésima quinta? Sentei-me ao seu lado sem pedir licença:         
– Alguma ocasião especial?
Ela nem olhou para o lado.
            – Gosto de pensar assim. Por que você veio até aqui?
            O ponto é apenas uma representação gráfica. Sua frase foi rápida e cortante. Talvez fosse melhor escrever sem pausa alguma:
            – Gosto de pensar assim porque você veio até aqui?
            Talvez sem a interrogação:
            – Gosto de pensar assim porque você veio até aqui.
            Dessa forma dou o sentido que quero. Com essa pequena licença poética, eu me sinto um pouco mais querida por ela:
            – Não é a única que tem o direito de beber sozinha.
            – Agora que você chegou, acabou de tirar o direito de ambas.
            – Temos o direito de tomar cicuta. Mas você não faria isso, faria?
            – É preciso coragem.
            – Pra tomar cicuta?
            – Não. Pra beber com você. Pra tomar cicuta é preciso muita covardia.
            – Você não mudou nada.
            – Você continua a mesma.
            Essa parte já é mais difícil de editar. Não sei como isso poderia ser voltado ao meu favor. Prefiro pensar que a repulsa era gerada pela falta de domínio sobre o objeto desejado. Eu sendo o objeto. O desejo, implícito, formando uma barreira entre nós. Ou talvez a barreira fosse aquele que nem estava bebendo com ela:
– Cadê ele?
            – Ele quem?
            – O barman.
            Sarcasmo nunca fora nosso forte. Eu mal o punha em prática e ela quase nunca entendia. Ingênua. Olhou para o barman e fez sinal para que ele me atendesse. Pedi uma cerveja porque sabia que ela odiava. E tentei deixar de ser sarcástica:
– O Pedro, é claro.
            – Não estou mais com ele.
            – Não?
            Eu sorri, tentando não sorrir. Ela olhou em meus olhos pela primeira vez naquela noite. Só para constatar que eu ainda gostava dela. Vadia:
            – Esconda esse sorriso.
            – Não estou sorrindo, foi só um reflexo.
            Silêncios não são apenas constrangedores. Raramente um silêncio me deixa constrangida. Eu reflito. Calada eu consigo ouvir melhor meus pensamentos e deixar que cada lembrança grite como se estivesse sendo torturada:
– Vocês já estiveram “não juntos” por algumas vezes. O quão “não juntos” vocês estão agora?
            – O suficiente para eu beber sozinha.             
            Eu não sorri. Aborreceu-me muito aquela imagem. Doeu tanto pensar que alguma lágrima queria sair de seus olhos. Mas ela não deixava. Não na minha frente:
– Por que acabou dessa vez?
            – Ele é uma criança.
            – Então quando ele crescer...
            – Quando ele crescer vai ser tarde demais. Não vou esperar tanto tempo.
            Dezenove anos ele tinha. Achando-se melhor que eu porque tinha a Luíza. Querendo fazer amizade e marcar território. E eu rindo e pensando “Eu como a sua mulher, filho da puta. Mais do que você”. Ele desconfiava. Não tinha certeza só porque eu sou mulher. Mas pelo jeito que olhava para mim, eu sabia que desconfiava:
            – E quanto a nós?
            – Ainda existe esse pronome no seu vocabulário?
            – Ainda existe no seu.
            – Não agora. Nesse momento, somos eu e meu copo.
            – Continua sendo um “nós”.
            – Para você, seria um “vós”.
            Trinta e seis, trinta e sete. Trinta e oito vezes em que ela me reduziu às cinzas, só com palavras. Não. Eu já perdi a conta, de fato:
            – Você ainda não me disse para sair, então eu continuo aqui.
            – Sou corajosa.
            – Suas mãos trêmulas me dizem o contrário.
            – Está frio.
            – Não. Não está. Vinte e oito graus, treze por cento de umidade e um bar lotado em São Paulo. A última coisa que você está sentindo agora é frio.
            – É você que está me fazendo mal.
            – Então porque você ainda não me disse para sair?
            – É porque você me faz muito bem.
            E ela me deixou na companhia do meu copo de cerveja. Abandonou até a sua vodka. A parte cômoda de amar uma mulher era que eu podia segui-la quando ela tentava se esconder no banheiro. Mas ela precisava daquele momento pra chorar suas lágrimas e voltar como se nada tivesse acontecido. Eu queria que ela se sentisse superior. Uma massagem no ego nunca é demais quando se está na merda.
            Trinta e nove, quarenta. Quarenta copos sujos entregues ao barman, antes que Luíza voltasse ao seu lugar no balcão. Não notei nos olhos, nariz ou lábios, algum indício de pranto. Era mais forte do que eu imaginava. Era mais forte que eu:
            – Vou pra casa.
            – Quer uma carona?
            – Você bebeu, não pode dirigir.
            – Eu vou dirigir com ou sem você no meu carro.
            Com ela no meu carro, eu correria menos risco, pensei. Talvez ela começasse a se sentir superior demais e eu me arrependeria de massagear tanto o seu ego:
            – Você pode bater o carro, com ou sem mim.
            Aposto que ela pensou “Melhor que seja sem mim”. Enquanto pagava a conta, lembrei de tudo que havíamos vivido juntas. Quarenta e um, quarenta e dois, quarenta e três bons momentos. Os maus eu já não conseguia contar. Eram tantos:
            – Adeus.
            E ela passou esbarrando o braço em mim. O mesmo braço que eu puxei para poder beijá-la. Eu não estava totalmente sóbria. E ela não estava totalmente disposta a deixar ser vista beijando outra mulher. Ninguém percebeu, ninguém deu a mínima, ninguém, nem de longe, se importava. Mas ela sim. E foi ela quem saiu sem dizer nenhuma palavra. Foi assim que fodi com tudo e tive a certeza de que ela nunca mais falaria comigo.
            Quarenta e quatro, quarenta e cinco. Quarenta e seis passos que ela deu até eu correr atrás dela. Mesmo com o salto alto. Dessa vez eu não lhe daria momento algum para chorar lágrima alguma. Dessa vez eu tinha o direito de saber o que se passava em sua mente. Gritei seu nome pela rua movimentada. Algumas Luízas desavisadas olharam para mim. Mas não a minha. A minha Luíza continuou andando, a passos cada vez mais rápidos. Cada vez mais longe. Quarenta e sete segundos até que eu conseguisse alcançá-la:
            – Vai voltar pro Pedro agora?
            Ela não olhou para mim. Eu achando que ela nunca mais olharia. Mas quando seu rosto se voltou contra a luz e contra qualquer orgulho, as lágrimas daqueles olhos finalmente se viram livres. Aumentando a umidade relativa do ar:
            – Pedro é o caralho! Chega com isso! O problema não é o Pedro e nunca foi. Não tenta se isentar da culpa. Ela nos pertence.
            E ela seguiu em frente sem nem secar as lágrimas. E eu voltei para o meu quarto, para minha cama. Para meu Saara particular. E continuei contando. Quarenta e oito, quarenta e nove. Cinqüenta. Conto até cinqüenta e ela volta pra mim antes disso.    

19.1.12

No caminho pra casa...

Esse rascunho foi tirado de um caderno que me acompanha constantemente. Escrito apressadamente, com caneta Stabilo sobre papel sulfite 75g, não teve nenhuma vírgula modificada no momento da transcrição. Surgiu de uma cena observada a distância, durante o horário de pico em uma estação de metrô. 

***

            Mulher ruiva, vinte e poucos anos, fala ao celular enquanto olha uma vitrine qualquer, de uma loja qualquer, em uma São Paulo qualquer. Mulher morena, trinta e poucos anos, vê a ruiva e se surpreende com o próprio berro: “Cristiane!”, no momento em que leva as mãos à boca para, ao mesmo tempo, calar-se e conter a surpresa. A ruiva, que a essa altura não sabemos se é realmente Cristiane ou se carrega algum outro nome de batismo irrelevante para o decorrer de nossa história, olha para a morena e não responde, apenas se afasta na direção contrária. A morena, ainda abismada, continua a cerrar a boca com as mãos. E nunca mais se discorre sobre o assunto.
            Fato é que a ruiva não carrega, nunca carregou e nunca carregará o nome de Cristiane, havendo algum certo engano por parte da morena, que abismada ainda se encontra e – não fosse o marido a tirar-lhe do choque inicial – estaria com as mãos pousadas sobre a boca até presente momento. A cena acima descrita se deu na presença de algumas dezenas de transeuntes, mas sob a atenção de nenhum deles, pessoas que de passagem ali se encontravam e certamente tinham coisas mais importantes para se preocupar. Deixados de lado o fato e o foco inicial, é senso comum que a beleza indiscutível da ruiva poderia chamar a atenção de muitos. Porém, seria raro encontrar duas pessoas de tão fino trato, belo sorriso e olhos verdes lacrimejantes de graça que partilhariam de tão inspiradoras características. As ruivas que nunca haviam se encontrado dividiam agora, além do aspecto físico, um único denominador comum; os olhos da morena que choravam pela imagem da amiga, há tanto tempo jazida. Pois confusa era a história e confusa continua a sucessão do que se conta.
            Não há fato isolado. Não há ato sem conseqüência e quem já viveu tempo o suficiente sabe disso com certo pesar. Eis que Cristiane não viveu, não vivia e não poderia saber que cada ato de morte resultaria numa conseqüência em vida. Vida dos que ficaram. “Não faça isso consigo mesma”, diria a amiga. Amiga de tantos anos, morena de nascimento e marcada pela desistência de Cristiane. Cristiane, ruiva de falecimento, que se fora por livre e espontânea vontade, direito conquistado e direito exercido. Egoísta seria para alguns, covarde para outros e de extrema coragem para alguns poucos. Mas, não cabendo a olhos tão distantes julgar quem nem se conhecera de fato, digo somente que Cristiane abriu mão e ponto. Um ponto não final, mas decisivo para todas as conseqüências.
            Estes foram os fatos. Tudo aquilo que poderia ser contado com um pouco mais de carinho, menos formalidade e mais envolvimento, não fosse a distância que separa o que conta daquilo que é contado. De volta ao shopping, de volta ao engano, a morena teria ido de encontro à ruiva que, ainda sem entender muita coisa, ouviria atenta ao desabafo sobre uma vida que nunca vivera, por ser dona de outro nome, outra vida e consciência, outra história gravada em lembranças e, quem sabe, outro porvir. A lembrança de uma distante adoção, nunca escondida de seus benfeitores pais postiços, surgiria como um estalo para explicar que a história das irmãs separadas no nascimento tinha como única ligação o útero original e a linha de morte bifurcada que voltara a se encontrar através de uma morena misteriosa. Ambas se abraçariam. Um elo formado sem sentido, pois não existe necessidade de lógica em atos tão puramente humanos. Seria a história observada de longe. Porém, o maior instante de proximidade fora o momento do berro, tendo, a partir de então, apenas aumentado a distância entre os corpos, entre a história, entre a explicação de tudo. E este é o momento que só podemos imaginar. Desde que a ruiva foi embora.

4.1.12

Maria Helena

Maria Helena nasceu em Olinda e não gosta de nome composto. 
É filha de holandeses e odeia sotaque nordestino. 
Tem uma queda pela Clarice e não suporta olhos claros. 
Corre descalça pela orla da praia e tem receio de lésbicas. 
Almoça no Gendai e fica irritada com a areia da praia nos pés. 
Lê Senhor dos Anéis e tem nojo de comida japonesa. 
Comprou o ingresso pro Tio Vânia e não tem paciência pra trilogias. 
Faz faculdade e nunca gostou de peças russas. 
Pede bis no show do Chico e não vê utilidade num diploma.
Fala pra mãe que a ama e detesta MPB. 
Rói unha e se diz filha da puta. 
Dança sozinha e coloca unha postiça. 
Não usa maquiagem e prefere não se mexer muito. 
Odeia os buracos de espinha que tem na cara. 
Maria Helena não gosta de muita coisa, nem faz questão de ser coerente. 
Maria Helena não gosta de nada disso porque é dela. 
Se fosse de Clarice, ela até poderia ter certa simpatia. 

26.12.11

Restos mortais

Fruto de uma fase onde o bloqueio criativo era apenas mais um sintoma. Eu transcreveria esse texto e mudaria uma série de coisas. Mas como saiu, assim quase psicografado, fica um pouco mais autêntico. 
Da série: para desenvolver e aprofundar, no sentido formal e subjetivo. 


Vende-se uma alma.
Vendo se há alma.
Pesando perdas, ganhos e inércia.
Paro e tento recordar:
Onde estarão os demônios que enterrei?
Conto os sete palmos e cavo para libertá-los.
Qual cova?
Minha mente é cúmplice desse esquecimento.
Não quer dar-me a pá.
Quer vendar meus olhos e brincar de cabra-cega.
De onde você veio?
Saiu de mim. Não quer voltar.
Meus anjos.
Voaram longe sem as asas.
Caíram no mesmo túmulo que eu então cavava.
E joguei terra sobre suas preces.
Qual terra?
Quantos passos contarei?
Qual direção seguir?
É de dentro pra fora.
A ação. A reação.
De fora pra dentro.
Meu caminho. Meu mapa.
Está tudo aqui comigo.
Sou a terra, o túmulo, a cova.
Você enxerga minha pedra tumular.
Você lê o meu epitáfio.
Mas não pode ver além. 
Deposite suas flores.
Acenda uma vela.
Faça uma oração.
Antes que eu liberte meus demônios e dê asas aos meus anjos. 

24.12.11

Do livro [ou o primeiro post]

O texto a seguir é um pequeno recorte de uma espécie de diário que faço desde o começo da minha adolescência. Nele escrevo desde simples desabafos até teorias que levei dias a fio para desenvolver. Talvez sejam coisas que só façam sentido em minha cabeça. Ou podem soar familiares para quem estiver lendo.
Este, em particular, é parte de uma série de sincronicidades que me fazem, cada vez mais, querer compartilhar essas linhas com quem conquistou esse direito - e alguém cujo livro também tem me proporcionado uma ótima leitura.



***

          Você está lendo essa linha? Não é qualquer um que tem o privilégio de fazê-lo. Poucos  chegaram até aqui. Pode não parecer grande coisa à primeira vista. Mas é único. É meu. Compartilhar contigo não é fácil. Longe disso. É penoso abrir o livro e deixar que alguém o leia – em sua melhor forma gramatical ou em seu pior erro de sintaxe. Mas mostrar somente as belas passagens seria como ler um livro sem final. Os deslizes fazem completa a minha obra, por mais incompleta que ela ainda se apresente.
          Perdoe-me pelo excesso de reticências. Minha hesitação se mostra presente quando meu silêncio não é capaz de dizer mais do que minhas palavras. As aspas saem tortas quando não há quem citar, não há parâmetro para me guiar. Desculpe-me pela redundância, a vontade de me fazer entender a todo custo. Ignore a dislexia, tente compreender por tudo aquilo que significa, não por letras dispostas com esmero. Não esqueça das notas de rodapé; aquilo que se apresenta em texto pode significar muito mais do que você imagina. Não há sinopse para preparar, nem índice para guiar. Descubra, linha por linha, pacientemente, aquilo que me toma ainda mais tempo para colocar em palavras.  
          Não brado aos quatro cantos a epopeia do meu íntimo. Mas é nesse sussurro ao pé do ouvido em que te entrego em mãos um poder que nem você imagina que tem. Simplesmente por ter me cativado. Independe do que leio em seus relatos. O que é meu, posso dividir com quem quer que seja. Mesmo que, quem me leia, não escreva nada para me mostrar. Só me resta ter a esperança de que compreenda o meu vocabulário, sem linhas trocadas ou vírgulas desperdiçadas. E esperar para que, um dia, também possa virar a página do seu livro.