19.1.12

No caminho pra casa...

Esse rascunho foi tirado de um caderno que me acompanha constantemente. Escrito apressadamente, com caneta Stabilo sobre papel sulfite 75g, não teve nenhuma vírgula modificada no momento da transcrição. Surgiu de uma cena observada a distância, durante o horário de pico em uma estação de metrô. 

***

            Mulher ruiva, vinte e poucos anos, fala ao celular enquanto olha uma vitrine qualquer, de uma loja qualquer, em uma São Paulo qualquer. Mulher morena, trinta e poucos anos, vê a ruiva e se surpreende com o próprio berro: “Cristiane!”, no momento em que leva as mãos à boca para, ao mesmo tempo, calar-se e conter a surpresa. A ruiva, que a essa altura não sabemos se é realmente Cristiane ou se carrega algum outro nome de batismo irrelevante para o decorrer de nossa história, olha para a morena e não responde, apenas se afasta na direção contrária. A morena, ainda abismada, continua a cerrar a boca com as mãos. E nunca mais se discorre sobre o assunto.
            Fato é que a ruiva não carrega, nunca carregou e nunca carregará o nome de Cristiane, havendo algum certo engano por parte da morena, que abismada ainda se encontra e – não fosse o marido a tirar-lhe do choque inicial – estaria com as mãos pousadas sobre a boca até presente momento. A cena acima descrita se deu na presença de algumas dezenas de transeuntes, mas sob a atenção de nenhum deles, pessoas que de passagem ali se encontravam e certamente tinham coisas mais importantes para se preocupar. Deixados de lado o fato e o foco inicial, é senso comum que a beleza indiscutível da ruiva poderia chamar a atenção de muitos. Porém, seria raro encontrar duas pessoas de tão fino trato, belo sorriso e olhos verdes lacrimejantes de graça que partilhariam de tão inspiradoras características. As ruivas que nunca haviam se encontrado dividiam agora, além do aspecto físico, um único denominador comum; os olhos da morena que choravam pela imagem da amiga, há tanto tempo jazida. Pois confusa era a história e confusa continua a sucessão do que se conta.
            Não há fato isolado. Não há ato sem conseqüência e quem já viveu tempo o suficiente sabe disso com certo pesar. Eis que Cristiane não viveu, não vivia e não poderia saber que cada ato de morte resultaria numa conseqüência em vida. Vida dos que ficaram. “Não faça isso consigo mesma”, diria a amiga. Amiga de tantos anos, morena de nascimento e marcada pela desistência de Cristiane. Cristiane, ruiva de falecimento, que se fora por livre e espontânea vontade, direito conquistado e direito exercido. Egoísta seria para alguns, covarde para outros e de extrema coragem para alguns poucos. Mas, não cabendo a olhos tão distantes julgar quem nem se conhecera de fato, digo somente que Cristiane abriu mão e ponto. Um ponto não final, mas decisivo para todas as conseqüências.
            Estes foram os fatos. Tudo aquilo que poderia ser contado com um pouco mais de carinho, menos formalidade e mais envolvimento, não fosse a distância que separa o que conta daquilo que é contado. De volta ao shopping, de volta ao engano, a morena teria ido de encontro à ruiva que, ainda sem entender muita coisa, ouviria atenta ao desabafo sobre uma vida que nunca vivera, por ser dona de outro nome, outra vida e consciência, outra história gravada em lembranças e, quem sabe, outro porvir. A lembrança de uma distante adoção, nunca escondida de seus benfeitores pais postiços, surgiria como um estalo para explicar que a história das irmãs separadas no nascimento tinha como única ligação o útero original e a linha de morte bifurcada que voltara a se encontrar através de uma morena misteriosa. Ambas se abraçariam. Um elo formado sem sentido, pois não existe necessidade de lógica em atos tão puramente humanos. Seria a história observada de longe. Porém, o maior instante de proximidade fora o momento do berro, tendo, a partir de então, apenas aumentado a distância entre os corpos, entre a história, entre a explicação de tudo. E este é o momento que só podemos imaginar. Desde que a ruiva foi embora.

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